Quanto Vale ou é Por Quilo? poderia se enveredar por um caminho leve e convencional - o de contar a história fictícia de uma empresa que se beneficia do assistencialismo no Brasil. Mas não quando a sua frente está o diretor Sérgio Bianchi, o cineasta rotulado por muitos de "provocador" e "marginal", adjetivos que ele despreza. Quem conhece a sua filmografia sabe muito bem que não basta apenas contar, é preciso reforçar a idéia na cabeça do espectador de uma forma mais contundente.
Em partes a história está lá, o funcionamento das instituições filantrópicas no país. No entanto, vem acrescida da analogia com a herança da escravatura. Seria genérico dizer que ele coloca um dedo numa ferida e expõe as vísceras de um Brasil debilitado. No entanto, é o que ele realmente faz, desta vez tendo com alvo os programas solidários de fachada, como atuam e conseguem o retorno do lucro.
E o lucro é o paralelo que rege o filme, um dos elos entre a história e os dias atuais. Se antes a elite vendia escravos, hoje aposta na miséria para encher os caixas. Passado e presente se misturam num painel de duas épocas distintas - do contexto social e econômico evidenciado na negociata de escravos do século XVIII à exploração da miséria dos dias atuais pelas ONGs e entidades filantrópicas.
Baseado livremente no conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis, a narrativa entrecortada, se dispõe de pequenas amostras das crônicas de Nireu Cavalcanti extraídas dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. É esse o recurso usado para salientar como funcionava a venda e o controle de escravos. O vai e vem de cortes deseja um efeito rápido de ação e reação. Na história propriamente dita, funcionários de uma empresa filantrópica interpretados por Herson Capri e Caco Ciocler revêem a imagem da instituição, o marketing social que rege o "business". Ou seja, toda a maquinaria que integra as corporações que possuem, entre outros apelos, o disque 0800 para doações, subtraído do imposto de renda em nome da exploração da miséria. Via de regra é assim que funciona - se o Estado não faz, alguém tem que cumprir o seu papel, utilizar a dieta da consciência e da boa ação, como ressalta uma das senhoras empenhadas no altruísmo.
Uma das funcionárias da ONG (Ana Carbatti) que trabalha em um projeto na comunidade carente descobre que os computadores de um programa de inclusão digital foram superfaturados. A partir daí desenrola-se uma trama que envolve um jovem desempregado, recém casado que precisa correr atrás de "meios de sobrevivência" e um outro que acabou de sair da prisão. Com temas paralelos como corrupção, racismo, injustiça social e a discussão da imagem institucional evidente nos prêmios por trás desse assistencialismo, o filme é perspicaz também na forma com que seus personagens transmitem a sensação de fina ironia estampada em suas atuações e falas, assim como procede o escritor Machado de Assis em suas obras.
O cineasta costuma dizer que bebe na realidade, se influencia na incoerência das situações do nosso dia-a-dia. Uma das cenas, aliás, é tirada de um fato real que ele admitiu ter presenciado no centro de São Paulo: a discussão que surge entre duas entidades assistenciais pelo direito de alimentar os mendigos que dormem ao relento. Novamente, estamos diante dessa dicotomia entre elites e excluídos.
A impressão é de um cinema construído com o objetivo de escancarar a realidade, sem concessões. Pode estarrecer o espectador num primeiro instante, mas, depois, é comum sairmos da apresentação desse filme com a sensação de que já vimos isso antes, como se fosse algo muito corriqueiro e explícito nas imagens e artimanhas de seus personagens. É a identificação direta com o jogo do "por baixo do pano", do tradicional "jeitinho brasileiro" que apenas reflete uma idéia já concebida de que vivemos num país torto, sem perspectivas e cheio de feridas. Basta observar a realidade, andar pela cidade de São Paulo ou outra qualquer, folhear os jornais - há sempre vestígios do que Sérgio Bianchi pretende levar às telas. Quem sabe nós não nos deparamos com essas "senhoras de boa índole" empreendedoras do assistencialismo e surrupiadoras dos impostos espalhados pelo bairro dos Jardins, com seus tailleurs de grifes importadas e bolsa Louis Vuitton nos braços. Ou talvez estampando seus rostos em colunas sociais famosas pedindo doações. Tudo em nome da imagem corporativa e do marketing social.
Se o filme "Quanto Vale ou É por Quilo" ganhasse a confiança da crítica especializada, aliado a um esquema de propaganda alternativa, teria tudo para reuniar um bom público e ficar muito mais do que injustas duas semanas no circuito de cinemas de arte, mas para que isso aconteça é necessário mudar o panorama cinematográfico atual.
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